segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Roguiim Bedém


A gente senta mais, ele, num banquinho próprio de caixote mesmo. Nem encosto tem, pro senhor vê. Conforto só das cachaças que trazem quando passa comitiva vindo lá do Urau. Para tal, isso, ele preza por demais. Todo fim de tarde se ajunta eu, mais ele e o Pedro Quirício a salivar conversa de fronti sua casa. E, se vai o tempo na gastura, cai desmedido num deitar de chuva. Tudo clareia. Tudo e vem como balas nas lembranças da gente. Ainda se escuta no pé do ouvido, o ar cortado em metal saindo das carabinas. Deitamo muito caboclo ruim, de ruindade mesmo, por esses Gerais a fora. Fizemô foi território de mando nas errança de jagunço. Hoje não, agora são calendários de bonança. Apraza o Senhor, também? Forasteiro festeja as coisas mais rústicas.
Aqui, por essas paragens, a vida é mansa, garanto como bom cristão que sou. Eu digo sempre a quem chega de lá. Esse mundão de pedra do senhor vinga umas boniteza que eu sei. Mas aqui nas rasteirices do cerrado a gente vive além da conta. A carne da gente endurece no sol e conserva na poeira. Mas coração não se afia em pedra, nem se faz em bica d’ água num sumidouro, apesar. Ao contrário, coração desse povão acorda aberto pro todo. Brota de toda grota em tudo que é morro. A pois, inté passarim a gente vê. Ocêis lá da Capital aquietam pra espiá passarim? Fui lá, uma vez só, por condição de doença. Não vi cabra que tornasse cabeça pro alto. Só se despencasse àquelas casas das alturas: - com jeito de puleiros! E, ainda têm gente lá, que vai pra Igreja cochichar reza. Quem vê passarim, não precisa de terço. Vê, já, o Cristo voando. Acerto na convicção! Cada passarim pia canto diferente é pra acordar melhor o dia. Isso minha Vó Ziza ensinou de pequeno e por certo está. Obra de Deus, maior se fez? Só o sol mesmo, maior em tudo, naquele modo de aprumar amanhecer pros passarim bordar cantoria.
A modi o Senhor, arranchar por aqui, melhor lugar que essa venda se desconhece. Têm dois quarto cá dentro. O lençol a patroa ajeita. Luxura num tem, digo logo de antemão. Porque daqui não se vê sempre o gracioso. Só quando Luanda Lindúria passeia na Vila. Ontonti mesmo, me alembro bem. Já sô velho, meu rosto diz. Mas recordo pra modo o Senhor vê como a cabeça ajeita a vida. Ela se achegou e fez compra de duas canecas de arroz, só pro gasto do almoço. É filha do Coronel Mário Reis. Ainda sem tempo de ir pra Capital, logo se vai, e deixa os olhos da gente num dia de saudade.
O povo contadô de história verseia que, ela, daqui não faz parte. Nasceu em casa e tempo errado. Devia mesmo é ser moça de castelo, feita donzela e disputada por cavaleiros. Por idéia d´outros cabia no conto luxura das arábias, onde por bem viveria em palácio. E de certo sonhar, essa gente condena o pensamento nosso a acreditar. Até apelidaram de Mourinha. Qual, ela sorri! Um sorriso alto e luminoso, na maneira manhosa de manhã fresca, e dum canto a outro da boca. Os olhos são amêndoas grandes, sumidos na timidez. E a pele, morena, em aparição nobre de jatobá-rosa. Os Cabelos lisos de seda, bons de cobrir nas noites de amor. Têm até a lua no nome. Já se viu igual, prateada? O batismo antão, primeiro é da noite, coisa séria do destino. Ainda tô pra vê por de trás desse balcão! Quando sai de casa, sempre traja vestido de cetim. Imagine o Senhor, parece segunda pele da moça, de natural que é o dito caimento. No mais, o vestido não tem botão. É preso só no alfinete. E todo sempre, solto com o vento a soprar doideiras na gente. Mas não se apeei não, senhor. Ela a qualquer sol do dia chega de anunciação.
Pois veja, já me perdia na graça de Lindúria. Vê se não tonteia? Ia no falado do gracioso. Pois o lado maior aqui do sertão é o grandioso. Vai tudo para além das vista da gente. Some nas lonjura com os olhos miúdos. Quer ver em noite de temporal! Valha-me Deus! O céu torna dia outra vez. Alguém contesta? Ninguém: todos guardam no respeitar silêncio. Só olhe, disso sei bem, por que andei por tudo aqui quando moço. O sertão é aberto. Não cabe num prédio, nem tem chave por abrir. Isso já disse pr’um médico lá da capital. Ele trabalhava por essas bandas com desgosto de ver tanta doença. A pobreza vinha companheira, varrendo esse chão, urrando lágrimas. Matando sem piedade criancinha de ontem nascida. Por isso, não carece de desgostar daqui, não. Grandeza tem de monte. E cada coisa seu lugar. Isso eu sei que tem, sem tirar o chapéu. É tudo pra pertencer manobra do não entender. Pra gente atinar que é pequenino de formiga nessa terra de nosso Pai.
Óie, vou dizê pro Senhor! Tome essa daqui! É boa também! Meu compadre Sidônio que fez no sítio dele. Amanhã bem cedim, levo o Senhor pra conhecer Roguiim. Vô dizê, ele gosta de visita das lonjuras. Só não tem intimidade com essas máquinas de retrato. Mas empresto essa pinguinha da boa. Leve de presente pro Roguiim. No agrado ele faz inté pose de artista. É perto daqui, uma légua e meia na montaria. Tenho dois cavalos no cocheiro da venda. A gente sela e amonta beirando pr´aqueles arroios de fora. Só me alembra de levar café mais pão com manteiga. Na volta à fome molesta o quengo.
Antão, o nome parece gracejo, apelido, ou sei lá o quê! Roguiim, culpa de quem o nome assim? Filho de pai traído? Raiva do pai postiço? Não sei se foi. Não leve, o senhor no picadeiro. O orgulho dele é além da conta e contesta na bala. Ninguém sabe de onde vem o diabo desse nome. Essa gente desconhece quase tudo dele. Muita invencionice espalham. Ele já contou que nasceu na Serra das Sete Estrelas. Eu pergunto toda vida aos vaqueiros que pousam aqui. Nunca ouviram falar, ou pisaram nas poeiras das Sete Estrelas. De certo não existe mesmo.
Uma noite contando caso, Roguiim disse que nasceu no meio dumas veredas. Saiu d’ água, jorrando vida. No não nem, nem falou na mãe. Eu mais Pedro Quirício não insistimos de perguntar. Na cabeça dele, o que queria era de ser um rio. Passar assim, sempre rumo abaixo, sem tempo de acabar. Murmurando baixinho, respeitoso, na serventia de chão pros barqueiros. Jornada de extensa vida. O senhor já embarcou no São Francisco? Assim ele teria de ser, rio de braço largo com muitos eitos. Mas que evém pra terra num fiozinho. Aí depois, de tanta serra descer, lavando pedras, banhando molecadas e ir bebendo de outros riozinhos torna viração em rio maior. De pôr medo na gente. Sozinho, lá, todo dia a encostar o infinito. Donde nas barrancas repousam vida e morte.
Como falei no já riscado. Roguiim preza os visitantes. Mas o Senhor esqueça de afoitar nas perguntas. Sua prosa aceita só o falar direto. Despenca o palavreado em cachoeiras, véu de palavras puras. Certa vez, passou a noite toda, da gente ouvir coruja à noitinha até o cantar de galo na manhazinha, falando dum buritizal. Uns jagunços de outro bando o amarraram, na ocasião. Deixou por dias, cativo. Na noite da narração, danou a lembrar de tudo, de como o vento batia nas folhas, da feitura de cada uma delas, da altura do tronco, dos aromas, da sombra, das formigas cabeçudas em carreira de subir, de todos os vaga-lumes e dos coquinhos que caíam. No detalhar mais espantoso. E o pensamento nosso, leito abaixo, no rebolo das espumas.
E como saiu? Não sei não Senhor. Mas Roguiim mostrou os dedos mindim de cada jagunço daquela desfeita. O senhor desvie o medo. No alpendre de Roguiim, amarrados à linha de arame, junto às telhas, a gente contabiliza cada morte sentenciada. Roguiim é homem de vaidades. Fez questão de guardar cada morto seu por perto. Assim evita mal criação das almas, diz ele. Por isso a oferta de dedim mindim dependurado. O senhor verá! Roguiim é sujeito caridoso. Assusta é o tamanho do cabra. Alto quase de nuvens na cabeça. Depois se acostuma. Tudo na vida é de costume, não é mesmo? Costume maior do Roguiim, vou dizê pro Senhor. É todo sempre de fala nova. Evém tudo da invenção? E quando a bica parece secar, ele arranja maneira, costura todas as letras. Pronto, nascem outras palavras. Às vezes as coisas nem existem, mas a palavra já está lá: molhada na língua do Roguiim. Pronta pra ganhar o mundo.
Sei pouco dele quando jagunço. Cheguei tarde no seu bando. Já era tempo do Roguiim apartar guerras, cravar fogo só nas juritis. Nas andanças de jagunços a vida é teia fina. Você acorda e as balas podem dormir no teu peito. Tristeza maior é morrer no cedo dia. Tem dias de chumbo, o senhor deixe de saudade desse tempo! Pra tuas histórias de jornal pode prestar pro bonito. Mas, olhe bem, o senhor já espiou clarão de carabina? O ódio nos olhos dos homens? É coisa do Demô! Deus não ajeita.
Bravura Roguiim teve além da conta. Tudo que era cabra inimigo, chefes de outros bandos até rogavam respeito e admiração. O senhor atente. Certa vez, ele fugia sozinho, seus vinte cabras ficaram pra trás com bocas de formigueiro. E os homens do Bajóca no encalço. Foram sete dias, quase pisando no calcanhar. Até que pegaram em tiros numa curva de estrada. Perto do Vale Itamaraty. Roguiim montado àcavalo rolou barranco abaixo. Sete balas alojadas. Só parou quando o braço enroscou na raiz duma árvore. Lá ficou boiando no riachão. Os cabras festejaram como morto.
A morte é senhora da vida. Roguiim conta que agüentou o pouco que tinha rezando. O peito apertava, quase sumindo a respiração, os olhos embaçados e o cheiro do vermelho tomando conta do rio. Quando apareceu a sucuri envolvendo, uma serpente-monstro. Escorregadia tomou de abraço o corpo todo. Roguiim disse que primeiro veio o aperto sufocante. Depois o alívio, quase como nascer. A sucuri rumou pra outra margem. Ele levantou o queixo e viu sumir as feridas. Roguiim conta, o povo espalha. Acreditar num acredito, mas desacreditar de tudo não carece. Perde a graça. O senhor crê no dito, assim, duvidoso? Guardo sempre aquelas palavras mais inventadas. O saboroso a memória esconde do esquecimento.

historieta narrada por [estradeiro-mor] de vereda acima.