quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sergipe, 18 de novembro de 1837

Caros possíveis leitores,

Sei que circulou muita cascata pelo acontecimento da prisão e posterior capação de Manuel Duda. A história que contarei aqui é verdade verdadeira, fato verissíssimo. Conheci por muito tempo Xico Bento, desde a pequenagem já nos afeiçoamos, o que nos levou a virarmos compadres. Só que essa atrocidade toda mudou tudo, conto isso porque um dia fomos como irmãos, hoje somos quase desconhecidos. Compadeci-me de Manoel Duda, cabra que pagou pela falta de hombridade de seu contratante. Mas contemos a história completa, vamos aos fatos. Xico Bento era comerciante rico, desde pequeno já sonhava em casar com mulher direita e ser homem de posses, deu dois tiros certeiros. Transformou a velha mercearia de seu falecido pai em um comércio abastado, ainda se matrimoniou com Liodalva, moça bela e pura. Enganou-se o que achava que a vida de Xico seria só de encantos. Algum tempo depois do casamento, no qual tornamos cumpadres, a prosperidade do comércio diminuiu (acho que por olho gordo) e, para piorar, Xico passou a desconfiar que Liodalva tava lhe corneando. Veio tratar comigo dessa história. Disse-lhe para averiguar direito, pois, caso se confirmasse o adultério, era caso para ser tratado a base do tiro. Dias depois, Xico veio me dizer que contratara um cabra para tratar do caso, nome dele, Manoel Duda. Eis que na noite do dia 11 do mês de Nossa Senhora de Sant'Ana, Manoel Duda, exercendo o ofício pelo qual fora contratado, encontrou Liodalva em pleno ato adultero com funcionário do comércio de Xico, o Adeovaldo. Manoel Duda travou batalha com Adeovaldo, no entanto, deixou o salafráio escapar. Quando voltou para ter com Liodalva, apareceu a dupla Norberto e Nocreto (dizem que eram baitolas) que certamente se assustaram com a cena. Logo que Manoel Duda iniciou a tentativa de explicação, Xico Bento surgiu e o acusou de estupro. Norberto e Nocreto o imobilizaram e o levaram a cadeia pública, o resto da história todos já conhecem. Sobre a atitude de meu ex-cumpadre, penso que receou ser conhecido por corno, afinal, Nocreto era fazendeiro conhecido e um cabra muito fofoqueiro. Minha velha amizade com Xico acabou depois disso, além de ter acusado um inocente, ainda era corno. De Adeovaldo, soube que andou disfarçado, era conhecido por Zé Boneca. Tempos depois, Xico descobriu e tentou matá-lo, não conseguiu e ainda voltou aleijado, tomou tiro nas bolas. Concluo este breve relato a dizer que o deixo, antes de partir para Pernambuco, para fazer justiça. Apenas o descobri em detalhes recentemente (como fiz não preciso contar) e o transcrevo aqui com sinceridade.

José Januário






Sobre o cabra Manoel

Depoimento de Rosinha

Tentei abster-me de ferrenha discução, mas sinto que as veias de meus dedos não irão parar de pulsar enquanto não opinar. Confesso que conheci cabra Manoel Duda, há um punhado de tempo atrás, ainda mantinha intacto o orgão que lhe conferia o certificado de macho. É, tratando-se do povo de Alagoas essas coisas fazem diferença. O que sei é que o cabra fazia juz ao mebro que carregava, não que eu tenha tido intimidade com tal parte de seu corpo, mas, sabe como é, as raparigas comentam.

Também sei que aquelazinha, a mulher do Xico Bento, de santa não tinha nada, talvez os saiotes que ela provavelmente roubava do guarda-roupa empoeirado da tataravó. Veja bem, os sinhô não ache que eu estou defendendo o Duda, mas que ela não prestava, ah, isso não prestava. Eu até acho que o Duda deve mesmo ter dado uns apertões nas carnes daquela sonsa, agora dizer por aí que foi contra o gosto daquela desavergonhada?! Isso é demais para minha pessoa doutô.
Depoimento transcrito por MB

Depoimento de Lindalva

O povo da cidade sabe que minha irmã é moça direita, um poço de candura. Tinha por desejo, quando moça, o de entrar para o covento; o próprio marido sabia disso quando a tomou em matrimônio. Pode parecer estranho uma moça tão dada aos assuntos da igreja se enrabixar por algum cabra, mas insisto em dizer que tal romance foi, de certo, abençoado pelos céus.

Xico Bento é um cabra respeitador, passou um perrengue pra conseguir conquistar minha irmã. Depois do casamento dedicou sua vida para ela , ela também só tinha olhos pra ele. É por isso que eu digo doutô, aquele atrevido do Manoel Duda merecia o capamento, se o Seu Delegado não tivesse feito eu faria com minhas próprias mãos.
Depoimento transcrito por MB

Depoimento de Zé Boneca

É! Agora andam dizendo por aí que Manoel Duda é baitola, não me leve a mal, não tenho nada com a vida do cabra e também não sou dado a preconceitos. A irmã da vizinha de minha cunhada, contou, e minha cunhada me contou que o Duda andava de chamegos com Nocreto Correia, sujeito bem apessoado. Mas todo mundo sabe que o Nocreto era território de Norberto Barbosa, tá certo, nem todo mundo, mas os mais chegados, se é que o sinhô me entende, certamente sabiam.

Não sei como é que os três foram parar de lesco-lesco pelas pedras da fonte, Norberto Barbosa é um homem possessivo. É certo que Nocreto tem o fogo de uma salamandra, e Manoel Duda também não é de se jogar fora, mas se tratando do ciúmes de Norberto uma safadeza a três me parece uma idéia insustentável.
Como eu já falei antes doutô não tenho nada a ver com a vidas dos outros, mas essa história de Manoel Duda ficar de chumbregâncias, não sei não.
Depoimento transcrito por MB

terça-feira, 28 de julho de 2009

Ah, como é belo o mar...
Imensidão azul, horizonte pleno, grandeza celestial. Lembro que contemplei extasiado aquela primeira vista. Naquele momento as lembranças das palavras de Padre Janeiro emergiram em minha mente, não entendia o sentido de determinadas explicações de meu preceptor. Esta, compreendi claramente no determinado instante em que enxerguei aquele oceano: "Nós somos a essência divina, o micro que se unirá ao macro. Como por exemplo o mar, se retirarmos uma gota dele, naquela ínfima parte estará contido todas as propriedades existentes no mar, contudo, não é o mar."
Impossível compreender tal exemplo sem conhecer aquela infinitude. Não pude conter a emoção com a nova compreensão, a saudade de Janeiro já era sentimento constante. Dantes de continuar, preciso proclamar um ato de justiça com meu padre, ainda não descrevi a meus possíveis leitores (se é que terei algum) algumas características marcantes daquele grande ser. Padre Janeiro era um homem de no máximo 1,70m de altura, brasileiro genuíno, era impossível identificar sua procedência, descendência. Tinha pele morena, cabelos lisos escorridos e olhos azuis. Era cabra forte, resistente, o vi levantar praticamente sozinho mais de uma igreja. Ser incansável, depois de desgastante dia de trabalho braçal e espiritual, encontrava tempo para se ilustrar e ainda me educar. Suas melhores característica eram a alegria de estar vivo, servir e aprender. Não lembro de vê-lo brabo, se ficava, com certeza escondia. Possível ser um sofredor que não demonstrava, caso fosse esse o caso, ele seria mestre nisso. Seu sorriso é algo que nunca saiu de minha memória. Hoje, muitos anos se passaram, porém, as vezes quando tento ouvir o som do silêncio, este é interrompido por aquele sorriso sincero de Padre Janeiro. Já de muito refleti sobre este ato do criador, o sorriso. Deus já nos criou passíveis de sermos nossos próprios terapeutas. Nos tempos contemporâneos percebo multidões que buscam consolo em alternativas áreas de terapia. Naquela época, quando esta palavra poderia soar como palavrão, Padre Janeiro, no primor de sua inteligência, percebera que o sorriso é a terapia celeste. Um dom nos concedido, aproveitado por aqueles que o percebem e valorizam. Talvez este foi o grande legado deixado por meu preceptor em minha formação, a alegria de viver!

Depois de peregrinar com o regimento por todas as bandas do Ceará, chegamos a Fortaleza, foi quando pude conhecer o mar. De lá pegamos barco para Belem. A capital do Pará era a porta de entrada da Amazônia, ponto de encontro de milhares de nordestinos que buscavam prosperidade na construção da ferrovia. No porto de Belem, olhei assustado para aquela multidão, famílias inteiras, muitos jovens, indivíduos que deixaram mulheres e filhos a fim de encontrar a salvação de suas famílias. O encanto começou a se quebrar neste momento, pela primeira vez senti medo da decisão que havia tomado. Será que todas aquelas promessas seriam cumpridas, e se não obtivéssemos êxito, conseguiríamos retornar as nossas antigas vidas. Tinha até a escolha de fugir e tentar alguns biscates até conseguir retornar a vida eclesiástica no Ceará ao lado de Padre Janeiro. Porém, o orgulho da juventude preponderou em minha decisão, já havia chegado até ali, agora não teria mais volta. Uma palavra de padre Janeiro não tive condição de compreender naqueles momentos, as vezes sentia-me agoniado naquela pequenitude da vila, confessava ardorosamente meus sentimentos ao padre, este então dizia: "Serrinha, tu és jovem, preste atenção em sua condição, lembre-se de Jó, sujeito que resistiu pacientemente todas as tentações do capeta sem perder a fé em seu superior. Tenha este indivíduo como exemplo, chegará o momento de receber o que queres." No meu caso, fugi apressadamente, deixei apenas bilhete, encontrava-me dominado pelo medo, mas não perdi o orgulho e esqueci a paciência.

Já no navio, subindo o Amazônas, ficara impressionado com a dimensão daquele rio, muitas das vezes não enxergava a outra margem, tinha a impressão que navegava no mar. Naqueles longos dias a alimentação foi escassa, munido apenas de uma rede que adquiri em Fortaleza e meus poucos pertences, não costumava sair muito da região do navio em que estava alojado.
Um dia, estava deitado, lendo um livro que ganhara de presente de aniversário de quinze anos de Padre Janeiro, era uma edição portuguesa antiga, datada do século XIX, da bela epopéia de Homero, a Ilíada. Já o lia pela décima quinta vez, quando, distraído, olhei para meu lado esquerdo e percebi duas moças me observando e sorrindo. Logo que as vi percebi que uma delas recebeu um cutucão da amiga, o que a fez corar. Achei aquilo meio esquisito, não dei muita bola. Apesar que senti um pequeno arrepio quando meu olhar cruzou com a moça que acabara de se avermelhar.

A noite, não conseguira dormir, o medo da decisão que tomara as vezes me dava pesadelos, outras me incapacitava de pegar no sono. Resolvi levantar e caminhar pelo convés principal que se encontrava vazio. O céu estava muito estrelado e a Lua tão cheia que até parecia dia. Fiquei impressionado a observar um estrela que tinha brilho tão intenso que deixara rastro de luz nas águas do rio tão forte quanto a Lua. No momento que me perguntava o que seria aquela estrela, ouvi uma voz feminina: - É a Estrela D'Alva, aparece de madrugada, anuncia a chegada do Sol. Fiquei perplexo com aquelas palavras, primeiro que não imaginava ser quase dia, segundo que trocara poucas palavras com passageiros e passageiras durante aquela estranha viagem. Ela continuou: - Fico te observando, tão quieto e pensativo. Fica vidrado naquele livro. Acho tão bonita a leitura, um dia quero aprender a ler e escrever, as vezes penso que poderia escrever todas as idéias que penso. Respondi sem pensar: - A leitura e a escrita nos libertam da falta de saber, mas podem ser uma prisão de nossos pensamentos no papel. Até hoje me pergunto o porquê disse logo aquilo, mas foi o que se procedeu. A tréplica veio rapidamente: - A prisão é ter tantas idéias, mas não ter a condição de libertá-las. Aquelas palavras me desarmaram, olhei meio pasmo para ela, sua resposta foi me beijar. Aquela sensação era algo que não esperava nunca ter pela primeira vez naquele momento. A continuidade dessa história, não preciso entrar em detalhes, posso dizer, como no dito popular, que fiz barba, cabelo e bigode. Já aprendi de uma vez o que padre Janeiro tanto me alertava, o perigo iminente dos prazeres da carne. Digo, com sinceridade, que neste quesito passei a discordar de meu mestre. O prosseguir da viagem foi mais tranquilo, já não me culpava tanto da vida eclesiástica que deixara. No dia seguinte a este acontecimento, a moça, denominada Adelaide (suas características físicas deixo viver apenas em minha memória) veio furtivamente até mim e entregou-me algumas folhas e um lápis, em seguida, disse: - Não posso demorar, o pai não pode me ver, já descerei em breve no porto de Santarem. Consegui retirar da bagagem do meu tio, lembre-se de mim e liberte suas idéias. Partiu rapidamente e, assim como havia falado, desembarcou no dia seguinte em Santarem.
Após esse acontecimento, passei a relatar minha aventura, fiz como Adelaide me havia pedido, iniciei o processo de alforria das minhas idéias.


Zé do trilho, o poeta que carrega a modernidade nas costas

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Eis aqui uma breve história daquelas que normalmente não se lembra, mas que fica marcada apenas para aqueles que sabem das coisas que ninguém viu. Em um pequeno vilarejo, daqueles que pode se contar as casas, encontrar todos na praça, prozear por horas sem perceber o tempo passar. Em um desses, ao pé da Serra conhecida como talhada, eu nasci! É apenas o que sei, mãe não conheci, irmão apenas os que adquiri ao longo dessa existência. Do pai, por muito tempo soube que era um antigo coronel, dono de grandes faixas de terra do sertão nordestino, que em uma noite fervorosa de prazer com uma escrava da casa, produziu o que viria a ser EU. Filho bastardo indesejado, era o que diziam. Tempos passaram até descobrir que meu pai fora um antigo bandoleiro, um indivíduo contratado por aquele tipo de coroner (que pensava ser meu progenitor) para fortalecer seu séquito de combatentes durante conflitos por terras, escravos e influência política. Meu pai um dia se rebelou, reuniu ao seu redor outros bastardos, antigos capatazes, capitães do mato. Iniciou um movimento violento contra os supostos donos de terra do sertão, alí ele virou mar, mar de sangue, violações e sofrimentos.
Essas histórias, difundidas pelos poetas do cordel, os historiadores do sertão, um dia chegaram ao meu conhecimento. Saber como este homem era meu pai, foi um longo processo de junções de vestígios, perguntas e mais perguntas, pitadas de imaginação e o encontro não premeditado com a fonte: esta era uma idosa mulher, daquelas que sabem que vai chover porque o Burro ta suando, que a chuva vem de um lado, pois o João de Barro construiu sua casa com o buraco virado para o outro. Essa nobre conhecedora dos mistérios da natureza, aquela que me iniciou no conhecimento das propriedades dos frutos de nossa terra, conheceu o homem que deixou um recém nascido na porta da igreja, pois pensava que assim ele seria uma pessoa direita.
Nesta vila, conhecida como Serra Talhada, José Adeobaldo deixou aquele menino, fruto de uma rápida e audaz aventura com a filha de seu coroner, que com a ajuda daquela que viria a ser a velha senhora, pode tirá-lo do destino cruel que seu avô lhe reservaria, para um anônimo, onde ser historiador de si mesmo, transformou-se em obsessão. De meu pai, soube que depois desse episódio partiu e não mais fora visto, apenas memórias de seus feitos foram sabidas, mas essa é uma outra história.
Criado pelo padre da capela de Nossa Senhora da Penha de Serra Talhada, passei a ser conhecido por Serrinha, pois não era filho de ninguém, e sim daquela terra, daquela serra. Rapidamente fui iniciado nos valores cristãos, além de ter acesso as letras, coisa rara para um filho da terra. O padre que me adotou era conhecido por Janeiro, pois seu nome era José em terra de zé. Como chegastes em janeiro, em pleno dia de Reis, ganhou a vulgata! Aos sete anos, Padre Janeiro fora para o Ceará e me levou junto, este seria o início de uma vida sem limites territoriais, sem raizes profundas, emergia assim o que viria a ser, o poeta errante!

Uma tal de modernidade
Como é difícil crescer!
Em pleno sertão, passei a vislumbrar possibilidades nunca dantes imaginadas. Não seria possível um fruto da serra ter condições de romper submissões historicamente construídas. Lembro de Fabiano, que ao perceber o guarda amarelo uniformizado, sentiu-se impotente frente a presença estatal. Salve Graciliano! Será que seus filhos, após o retiro forçado pelas pressões socioculturais e climáticas, obtiveram o sucesso imaginado pelo casal errante. Baleia não poderia ter desencarnado em vão...
Contudo, voltemos aos vislumbres! Padre Janeiro concedeu-me a liberdade e o exílio ao ensinar-me as primeiras letras. A cada mergulho na imensidão literária sentia brotar um intenso conflito entre forças contrastantes, duais. Em tempos posteriores, vim a perceber que esses pólos sintetizariam uma nova compreensão da existência.
A carreira eclesiástica foi-me oportunizada, todavia, sentia uma poderosa energia emergir em meu âmago, não podia compreendê-la ainda, porém, observava um diferente pulsar do cordis quando ouvia extasiado na praça os cordelistas cantarem histórias de cangaceiros, andarilhos, capoeiras, quilombolas, etc.
Já vivia no Ceará quando, ao acordar, ouvi um som de trompetes, bumbos e trombones. Levantei subitamente, sai de casa, localizada aos fundos da igreja, e atravessei a casa de Deus sem comunicar Padre Janeiro. Segui o som daquela banda e rapidamente a identifiquei como militar. Na praça estava um regimento. Perguntei a um transeunte do que se tratava aquela presença. Disse-me sem delongas: - São os fardados do governador, parece que estão recrutando gente para trabalhar. Indaguei para onde, contudo, o interlocutor apressadamente distanciou-se. Meu espírito bisbilhoteiro levou-me a presença do chefe do regimento, este explicou-me que tratava-se de uma grande oportunidade de obter prosperidade. O governo planejava construir a maior ferrovia brasileira, em plena floresta amazônica, esta traria modernidade e desenvolvimento e todos que participassem com êxito desse grandioso empreendimento ficariam marcados na história do país, sem contar das grandes recompensas que receberiam. Não entendi a parte da "modernidade e desenvolvimento", foi a primeira vez que ouvi tais palavras, impossíveis de compreensão naquelas bandas de sertão. Contudo, a possibilidade de ter meu nome cantado pelos poetas de cordel, além dos tesouros possíveis de obter naquela viagem mexeram profundamente com meus ideais de juventude. O Chefe, identificado por Januário, logo perguntou meu nome, data de nascimento e naturalidade. Já ia conceder meus dados, quando lembrei de Padre Janeiro. Sabia que este não concordaria com tal viagem, mesmo com todos os argumentos de grandes feitos, riquezas e essa tal de "modernidade". Meus recursos retóricos seriam incapazes de convencer meu preceptor. Resolvi sentar e refletir... Padre Janeiro sempre me alertava para cuidar dos impulsos, decidi acatar tal conselho. Olhei para aquele céu azulado, senti o forte calor nordestino, observei momentaneamente o espaço daquela vila, respirei o ar empoeirado do sertão e pronto, decidi! Não deve ter chegado a cinco minutos, para minha pouca idade, tempo demais para pensar sobre algo tão grandioso. Sentia que deveria ir, pois estava até com dificuldade de respirar com tal velocidade das batidas de meu orgão vital. Padre Janeiro não poderia saber, não aguentaria ver sua decepção. Disse ao chefe que me alistaria! Perguntei o ônus. Januário me informou que não os teria agora, o governo arcaria com tudo, depois, com as riquezas obtidas, pagaria a dívida, porém, esta seria parte ínfima do montante que ganharia. E completou: - E se apresse menino, partiremos depois do almoço, ainda passaremos em outros vilarejos.
Retornei a igreja. Padre Janeiro indagou onde estava e o que aqueles militares queriam. Falei de um estranho recrutamento de trabalhadores, nada que havia me interessado. Janeiro pediu para realizar os trabalhos matinais, preparar a liturgia, pois teria missa a tarde. Não tardei a concluir o pedido. Retornei a minha casa, arrumei um pequeno farnel, reuni meus poucos pertences e preparei minha saída. Antes, resolvi deixar um pequeno bilhete de agradecimento a meu padre, referência de pai e professor.

"Querido Padre Janeiro,
Parto para Amazônia, terra de riquezas e glórias por acreditar na modernidade. Agradeço por tudo que fizestes por mim até aqui. Tu me libertastes da ignorância, mas sentia-me preso nesta pequenina possibilidade de vida. Sigo convicto!
Com amor e respeito,
Serrinha"



Soube partir sem deixar vestígios, perto do anoitecer já me encontrava distante da vida que deixava.
Minha juventude impossibilitou-me de perceber que trilhava para nova prisão, só a experiência foi capaz de fazer-me entender o que seria aquela tal de “modernidade”.

Zé do Trilho, o poeta que carrega a modernidade nas costas

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sentença Judicial Datada de 1833 – Província De Sergipe

SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias.

O adjunto de promotor público, representa contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de mato, saiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.

Considero:

Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana; Que o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; Que Manoel Duda é um sujetio perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhã está metendo medo até nos homens.

Condeno:

O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete .A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro. Cumpra-se e apreguem-se editais nos lugares públicos.

Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote.

Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca

Manoel Fernandes dos Santos.

Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe,

15 de Outubro de 1833.

Fonte: Instituto Histórico de Alagoas.***

Cabra Manoel Duda e a Moita Maldita da História

Pobre do cabra Manoel Duda. Entrou para História da pior maneira: capado. Isso é que nos chega pelas fontes oficiais. O fato é que Xico Bento, há meses não dava no coro por razões desconhecidas em sua mulher. Durante um segundo inquérito (este que não fora revelado), após a execução da maldosa sentença ao cabra Manoel Duda, a mulher de Xico Bento voltou atrás arrependida e confessou o mal entendido. Dissera que durante as missas de Pentecostes tratou de atiçar o cabra sem o mínimo de pudor. E que o caso era de excomungá-la, logo tivera praticado a luxúria sob os olhos do crucificado.
Ela como integrante da irmandade do rosário postava-se ao lado de outras companheiras nas cadeiras dispostas no altar. De frente para Manoel, sujeito de boa índole, familiar e afeito à fé, insinuou abrir as pernas e pôr as vistas dele toda sua densa moita. O pobre homem no período da novena, ia para Igreja, mas rezava o terço pro diabo. Esqueceu-se dos pecados com tamanha oferta. Sorveu em seus íntimos desejos a brasa daquela mulher. Danou a procurá-la depois de cada missa.
Até que no nono dia recebera um bilhete confirmando o encontro na fonte. Aquela região da vila estaria deserta para as andanças da procissão. Enquanto que o marido Xico Bento, dis-traído, contaria nos dedos a rentabilidade da venda no último dia dos festejos. Tudo riscado no premeditado. Ás nove horas de lua cheia daquela noite do dia 11, Manoel e Liodalva se amassavam num lesco lesco caloroso. Quando Liodalva gritava pelo incomodo das pedras que friccionavam suas costas, apresentaram-se em tom de salvadores, Nocreto Correia e Norberto Barbosa ao voltarem duma briga de galos.
O desenrolar da confusão todos já sabem. Manoel Duda indefeso, resignado em sua vergonha, confuso por ser condenado somente por ter sido homem. Depois de capado, não suportou a dor maior de seu fim e matou-se. Liodalva linchada pela cidade ganhou o apelido de Moita Maldita, separou-se do marido frouxo, deixou a Vila só com as sandálias nos pés e fora acolhida num convento.

historieta narrada por [estradeiro-mor] de vereda acima.

Trinca

E Manoel Duda perdeu as bolas. Isso pra essas estâncias é pecado mortal, é pior que mutilação. Pior que perder braço, perna; comparado à vida mesmo. Dizem que Deus não gosta dessas sangrias; que o sangue de baixo é mais sagrado... vai saber!

Mas pior que isso aqui, só ficar de chumbregâncias com sujeito perto da fonte. Nessas vilas pequenas, onde o que o pai fala deve ser levado como missa, causos como esse sempre levam esse fim.

Vê quem ia entender que Manoel Duda, cabra de culhão respeitado, mulherengo de marca maior, tava de paixonite pelo Nocreto Correia?! Só o Norberto Barbosa, que também caía em dengos com o bonitão. Afinal, Nocreto era fazendeiro, viúvo, sem filhos, alto, com cheiro de cabra macho... mas era só o cheiro.

Sucedeu que o Manoel Duda, depois do imprevisto com Quitéria e Clarinha foi aparado pelo nobre Nocreto. Duda passou a ser peão da fazenda e já havia inté se mudado pra lá. Norberto Barbosa, da vendinha da vila vizinha, já tava enciumado e achando que ‘tinha caroço nesse angu’. Quando descobriu as chumbregâncias dos dois, foi tirar satisfação com Nocreto – que era dele, antes de aparecer um cabritinho mais moço.

Nocreto apresentou os dois. Depois de muito ciúme, passaram a viver juntos; os três. E eles iam, em muitas vezes, à fonte, onde conversavam e, abraçados, ostentavam aquela natureza bonita que Deus tinha dado pra eles...

No dia do ocorrido, tava quente por demais e eles não pensaram duas vezes em ir à fonte, ouvir o barulho da água e se refrescarem juntos. Mas não agüentando os hormônios e a adoração, saíram os três de ‘lesco-lesco’ pelas pedras. Liodalva, que ia em direção da fonte pra fazer sua oração, ouviu um barulho estranho. Chegou mais perto, atrás da moita, e gritou com o que viu. Os três se assustaram e logo trataram de explicar pra bela Liodalva o que acontecia.

Liodalva, carola e intolerante que é, resolveu acusar o primeiro que vira pela frente, e fazê-lo pagar por aquele pecado-de-morte que cometiam. E, em nome de Deus, rasgou as roupas e berrou com todas as forças. A multidão que vinha atrás dela correu para ver o que acontecia. Duda tomou a culpa em amor aos dois e disse ser o feitor daquilo. Os dois foram as testemunhas do falso acontecido.

A história foi aceita, mas ainda muita coisa rolou; inclusive, as bolas do Duda, coitado. E, por pouco, não foi também a cabeça de Liodalva, que não agüentando a pressão da consciência, fugiu; já desquitada de Xico Bento.


historieta narrada por H.