segunda-feira, 27 de julho de 2009

Eis aqui uma breve história daquelas que normalmente não se lembra, mas que fica marcada apenas para aqueles que sabem das coisas que ninguém viu. Em um pequeno vilarejo, daqueles que pode se contar as casas, encontrar todos na praça, prozear por horas sem perceber o tempo passar. Em um desses, ao pé da Serra conhecida como talhada, eu nasci! É apenas o que sei, mãe não conheci, irmão apenas os que adquiri ao longo dessa existência. Do pai, por muito tempo soube que era um antigo coronel, dono de grandes faixas de terra do sertão nordestino, que em uma noite fervorosa de prazer com uma escrava da casa, produziu o que viria a ser EU. Filho bastardo indesejado, era o que diziam. Tempos passaram até descobrir que meu pai fora um antigo bandoleiro, um indivíduo contratado por aquele tipo de coroner (que pensava ser meu progenitor) para fortalecer seu séquito de combatentes durante conflitos por terras, escravos e influência política. Meu pai um dia se rebelou, reuniu ao seu redor outros bastardos, antigos capatazes, capitães do mato. Iniciou um movimento violento contra os supostos donos de terra do sertão, alí ele virou mar, mar de sangue, violações e sofrimentos.
Essas histórias, difundidas pelos poetas do cordel, os historiadores do sertão, um dia chegaram ao meu conhecimento. Saber como este homem era meu pai, foi um longo processo de junções de vestígios, perguntas e mais perguntas, pitadas de imaginação e o encontro não premeditado com a fonte: esta era uma idosa mulher, daquelas que sabem que vai chover porque o Burro ta suando, que a chuva vem de um lado, pois o João de Barro construiu sua casa com o buraco virado para o outro. Essa nobre conhecedora dos mistérios da natureza, aquela que me iniciou no conhecimento das propriedades dos frutos de nossa terra, conheceu o homem que deixou um recém nascido na porta da igreja, pois pensava que assim ele seria uma pessoa direita.
Nesta vila, conhecida como Serra Talhada, José Adeobaldo deixou aquele menino, fruto de uma rápida e audaz aventura com a filha de seu coroner, que com a ajuda daquela que viria a ser a velha senhora, pode tirá-lo do destino cruel que seu avô lhe reservaria, para um anônimo, onde ser historiador de si mesmo, transformou-se em obsessão. De meu pai, soube que depois desse episódio partiu e não mais fora visto, apenas memórias de seus feitos foram sabidas, mas essa é uma outra história.
Criado pelo padre da capela de Nossa Senhora da Penha de Serra Talhada, passei a ser conhecido por Serrinha, pois não era filho de ninguém, e sim daquela terra, daquela serra. Rapidamente fui iniciado nos valores cristãos, além de ter acesso as letras, coisa rara para um filho da terra. O padre que me adotou era conhecido por Janeiro, pois seu nome era José em terra de zé. Como chegastes em janeiro, em pleno dia de Reis, ganhou a vulgata! Aos sete anos, Padre Janeiro fora para o Ceará e me levou junto, este seria o início de uma vida sem limites territoriais, sem raizes profundas, emergia assim o que viria a ser, o poeta errante!

Uma tal de modernidade
Como é difícil crescer!
Em pleno sertão, passei a vislumbrar possibilidades nunca dantes imaginadas. Não seria possível um fruto da serra ter condições de romper submissões historicamente construídas. Lembro de Fabiano, que ao perceber o guarda amarelo uniformizado, sentiu-se impotente frente a presença estatal. Salve Graciliano! Será que seus filhos, após o retiro forçado pelas pressões socioculturais e climáticas, obtiveram o sucesso imaginado pelo casal errante. Baleia não poderia ter desencarnado em vão...
Contudo, voltemos aos vislumbres! Padre Janeiro concedeu-me a liberdade e o exílio ao ensinar-me as primeiras letras. A cada mergulho na imensidão literária sentia brotar um intenso conflito entre forças contrastantes, duais. Em tempos posteriores, vim a perceber que esses pólos sintetizariam uma nova compreensão da existência.
A carreira eclesiástica foi-me oportunizada, todavia, sentia uma poderosa energia emergir em meu âmago, não podia compreendê-la ainda, porém, observava um diferente pulsar do cordis quando ouvia extasiado na praça os cordelistas cantarem histórias de cangaceiros, andarilhos, capoeiras, quilombolas, etc.
Já vivia no Ceará quando, ao acordar, ouvi um som de trompetes, bumbos e trombones. Levantei subitamente, sai de casa, localizada aos fundos da igreja, e atravessei a casa de Deus sem comunicar Padre Janeiro. Segui o som daquela banda e rapidamente a identifiquei como militar. Na praça estava um regimento. Perguntei a um transeunte do que se tratava aquela presença. Disse-me sem delongas: - São os fardados do governador, parece que estão recrutando gente para trabalhar. Indaguei para onde, contudo, o interlocutor apressadamente distanciou-se. Meu espírito bisbilhoteiro levou-me a presença do chefe do regimento, este explicou-me que tratava-se de uma grande oportunidade de obter prosperidade. O governo planejava construir a maior ferrovia brasileira, em plena floresta amazônica, esta traria modernidade e desenvolvimento e todos que participassem com êxito desse grandioso empreendimento ficariam marcados na história do país, sem contar das grandes recompensas que receberiam. Não entendi a parte da "modernidade e desenvolvimento", foi a primeira vez que ouvi tais palavras, impossíveis de compreensão naquelas bandas de sertão. Contudo, a possibilidade de ter meu nome cantado pelos poetas de cordel, além dos tesouros possíveis de obter naquela viagem mexeram profundamente com meus ideais de juventude. O Chefe, identificado por Januário, logo perguntou meu nome, data de nascimento e naturalidade. Já ia conceder meus dados, quando lembrei de Padre Janeiro. Sabia que este não concordaria com tal viagem, mesmo com todos os argumentos de grandes feitos, riquezas e essa tal de "modernidade". Meus recursos retóricos seriam incapazes de convencer meu preceptor. Resolvi sentar e refletir... Padre Janeiro sempre me alertava para cuidar dos impulsos, decidi acatar tal conselho. Olhei para aquele céu azulado, senti o forte calor nordestino, observei momentaneamente o espaço daquela vila, respirei o ar empoeirado do sertão e pronto, decidi! Não deve ter chegado a cinco minutos, para minha pouca idade, tempo demais para pensar sobre algo tão grandioso. Sentia que deveria ir, pois estava até com dificuldade de respirar com tal velocidade das batidas de meu orgão vital. Padre Janeiro não poderia saber, não aguentaria ver sua decepção. Disse ao chefe que me alistaria! Perguntei o ônus. Januário me informou que não os teria agora, o governo arcaria com tudo, depois, com as riquezas obtidas, pagaria a dívida, porém, esta seria parte ínfima do montante que ganharia. E completou: - E se apresse menino, partiremos depois do almoço, ainda passaremos em outros vilarejos.
Retornei a igreja. Padre Janeiro indagou onde estava e o que aqueles militares queriam. Falei de um estranho recrutamento de trabalhadores, nada que havia me interessado. Janeiro pediu para realizar os trabalhos matinais, preparar a liturgia, pois teria missa a tarde. Não tardei a concluir o pedido. Retornei a minha casa, arrumei um pequeno farnel, reuni meus poucos pertences e preparei minha saída. Antes, resolvi deixar um pequeno bilhete de agradecimento a meu padre, referência de pai e professor.

"Querido Padre Janeiro,
Parto para Amazônia, terra de riquezas e glórias por acreditar na modernidade. Agradeço por tudo que fizestes por mim até aqui. Tu me libertastes da ignorância, mas sentia-me preso nesta pequenina possibilidade de vida. Sigo convicto!
Com amor e respeito,
Serrinha"



Soube partir sem deixar vestígios, perto do anoitecer já me encontrava distante da vida que deixava.
Minha juventude impossibilitou-me de perceber que trilhava para nova prisão, só a experiência foi capaz de fazer-me entender o que seria aquela tal de “modernidade”.

Zé do Trilho, o poeta que carrega a modernidade nas costas

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