domingo, 12 de outubro de 2008

O Desejo de Gorete

Se a pequena Gorete era mesmo filha legítima do milionário apostador Gregório Gouvea, não se sabe. Mania de grandeza a pirralha tinha: não limpava a boca com guardanapo de papel, só comia depois que todos estivessem sentados à mesa e preferia morrer de fome a comer comida requentada. Certa vez, a menina foi a um jantar beneficente em uma cidadezinha do interior. Gorete recusou-se a comer por achar que o porco assado trazia uma feição tristonha. Depois de muita insistência por parte da mãe, ela concordou em comer a maçã que o suíno trazia à boca.
Quando Gorete encasquetou que queria um pônei de Natal, recebeu o primeiro e último “não” de sua vida. Acostumada a todo luxo que uma criança poderia imaginar, a recusa do eqüino deixou a menina doente de desgosto. A pobre chegou mesmo a passar quatro dias sem comer. Gregório resolveu então providenciar o tal pônei de uma vez por todas, percebendo a importância do presente para a pequena: foi tarde. Dois dias depois o quadro de Gorete piorou. A febre ultrapassara os quarenta graus e as proteínas da garota já entravam em processo de desnaturação. Faleceu.
E dizem então que cada vez que uma criança esperneia em um shopping center, convencendo os pais a contrair prestações, é o espírito da jovem Gorete se manifestando. A cada vexame que um pai passa, Gorete dá uma gargalhada enquanto passei pela eternidade, montada em seu querido pônei.

historieta narrada por C.

sábado, 11 de outubro de 2008

Um sujeito chamado sistema

“Bom mesmo era na minha época, quando criança fechava o bico enquanto adulto tinha prosa séria”, Dona Sebastiana, que ensinava as letras e números para muitas crianças do sertão, dizia isso toda vez que a menina opinava. A mãe dava um beliscão e olhava torto, mas até a criança sabia que era só pra não contrariar a sábia Dona Sebastiana.
Tinha oito anos, a menina era ladina, contava número grande sem nem usar os dedos e já arrematava uns pontos de crochê. Todos sabiam que ela não se criaria ali, ela merecia estudo de cidade grande, mas era perigosa a menina, tinha até o desplante de olhar os meninos nos olhos, olhe só o atrevimento!
Dona Sebastiana, antiga moradora e antiga em todos os aspectos, era uma sábia conselheira e a ela pertencia o pomar mais bonito da região, contavam que ela era bruxa, mas isso lhes conto em outra ocasião.
A menina contrariava Dona Sebastiana com gosto, como quem fala só pra poder cutucar. Certo dia, a velha ficou injuriada com a audácia da menina. A mãe, cansada das reclamações, decidiu mandá-la pra casa dos tios, numa cidade tão chique que tinha até prédios e lojas de departamentos, cujo nome me causa profundo estranhamento.
Voltou quando tinha quinze anos, uma bela moça, mas que de recatada não tinha nem o joelho, que fazia questão de mostrar. Usava preto, pinturas estranhas no rosto, tadinha, parecia de luto a pobrezinha! Diziam que a cidade grande tinha afetado a menina, até o padre tentou ajudar. Ela culpava um tal de sistema, que ninguém nunca tinha ouvido falar!
A cidade inteira se comoveu, até procissão ocorreu. A família se desesperou. Foi um caos, todo mundo atrás daquele tal de sistema que ninguém nunca conheceu. A pobrezinha até ouvia umas músicas pra se alegrar, mas muito estranhas por sinal, ou eram num dialeto muito peculiar que ninguém entendia, ou eram apenas sons excêntricos, eu diria, do tipo de britadeira de construção.
A mãe morreu de desgosto. A menina até tentou criar uma religião. Mas quando chove demais aqui no sertão, ninguém mais usa lenda antiga, Dona Sebastiana conta que é a mãe da menina que tenta lavar a alma da filha, tirar a pintura, voltar a ver a menina que saiu daqui sem conhecer as tais lojas de departamento.
E isso não é conversa fiada não, basta ligar o aparelho televisivo e provar a veracidade da questão. Tá todo mundo atrás desse tal sistema, é tudo culpa dele, ah se o mundo soubesse que esse sujeito provocou no sertão....


historieta narrada por quem estava na casa da árvore

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A cachoeira, aqui de Vila do Bosque

Quando a noite chama, a gente, aqui de Vila do Bosque, sai pra ver a lua e ouvir as corujas; às vezes, até os morcegos aparecem e fazem um ballet sincronizado, entre suas asas pontiagudas e as folhas das árvores. A gente, aqui de Vila do Bosque, quando a noite chama, se encontra na praça. Os homens carregam as lenhas, as mulheres, os casacos, e vamos todos encontrar nossa cachoeira.

Certa vez, quando a noite chamou, a gente, aqui de Vila do Bosque, fez o tradicional ritual, entre sorrisos e casacos quentes, até a querida cachoeira. Naquela noite, além da lua cheia enfeitando o céu, as corujas fazendo seu alarde e os morcegos dançantes improvisando novos passos, na cachoeira, flagramos a cena mais bonita que a gente, aqui de Vila do Bosque, já viu. Dentre as águas que caíam, abriu-se passagem, entre pedras e águas violentas, uma estrada ladrilhada que levava a um abrigo. Os ladrilhos refletiam a luz que vinha lá de dentro. Não me agüentava de excitação e quis ser a primeira a entrar e ver o que havia de especialmente bonito lá. As águas, naquela noite, estavam especialmente velozes e desreguladas; causavam medo. Mas antes que eu pudesse dar o primeiro passo para entrar naquela abertura, uma mulher, aqui de Vila do Bosque, de um salto se precipitou para dentro do abrigo. Naquele instante, as águas se fecharam numa cortina cantante improvisada, enquanto as corujas guardavam a entrada e os morcegos continuavam fazendo sua apresentação impecável. Lá de dentro, a gente ouvia gargalhadas gostosas, risadas satisfeitas e um canto encantador. A partir desse dia, a cachoeira se tornou colorida e encantadora. Agora, a gente, aqui de Vila do Bosque, não vai mais ver a cachoeira só quando a noite bonita chama. A gente, aqui de Vila do Bosque, vai sempre que precisa se encantar.

Hoje é dia que a noite bonita nos chama pra assistir ao espetáculo. E hoje, a gente, aqui de Vila do Bosque, decidiu ficar até o sol dourado e quentinho aparecer e dizer que é hora de ir dormir e deixar aquela bela mulher descansar da noite cantante.


historieta narrada por (H)

Juca Bananeira, o amigo da onça.

Aqui no Vale do Sumidouro, cabra bom não fraqueja na mira, nem ajoelha. Deita cutia, capivara e tamanduá com bala certeira. Tinha um tal de Juca Bananeira na Vila do Açum, pouco honrado de caça, mas que ficou conhecido por tudo que é gente daqui da redondeza por amigar com onça pintada. Naquela tarde, o sol despejava vermelho forte no horizonte, e o Juca, lá, audacioso: firme nos passos. Nas vestes aquele chapelão de couro e camisa cáqui na cor. Por debaixo, pendurava embornal, cantil, cartucheiras duplas e parabélun na mão. No traje, caçador, mais hábil não se tinha notícia. A contagem da caça, até então, só tatus e as urutus que atrapalhavam nas andanças. Vinha ele, mais veludo, seu cachorro. Cão velho, cego e surdo duma orelha, só farejava formigas aquelas alturas.
Conta o Bananeira, que depois de passar a roça do Bitú, veludo empinou o rabo feito cão brejeiro. Parou à beira da vereda. Barulho, só se ouvia do vento alisando o capim. O Bananeira escondeu-se atrás de duas pedras maiores. As fez de bom esconderijo. Apertava os olhos na direção do veludo. E o coitado lá, imóvel, namorando a moita. Aprumou o gatilho com destreza, tudo assim, nos conformes da esperteza. Certo de que a caça grande, ali moqueada, traria fama desejada lá na Vila. Mas fugiu-lhe o desfecho da vitória. No buriti a frente do veludo, pousou um bando de maritacas despertando sua ira. Naquele estardalhaço dos pássaros, o cervo, escondido escapuliu em disparada.
O Bananeira no que ia despejar toda sua raiva no cachorro, empalideceu: sentiu um bafo quente vindo das costas. Acompanhado dum cheiro de carniça, e aquele o roncar diferente dos trovões. Agachou-se, virou-se trêmulo e viu-se miúdo nos olhos da onça. Ela emperrada no chão, imperial, tête-à-tête com o Bananeira. O bigode de grande que era embaralhava as vistas. Ela fungava nervosa, enquanto, o Bananeira recuperava ar. Decidiu puxar o palheiro do bolso, num ato ajustável de paz, ganhando a confiança dela. Foi quando ascendeu o fumo que ouviu ruído estranho: um miado. Um gato agora lavaria o chão sertanejo numa refrega mortal. Tragou ríspido o palheiro e assoprou ouvindo novo miado. O que parecia improvável dava-se ali. A onça miava a cada vez que o Bananeira puxava o fumo. Sabia ele da frouxura de cabra, agora um diabo de onça frouxa não tinha visto ainda.
Percebeu logo que não era parte de frouxura da onça. Durante a trilha deixou no chão rastro do fumo. Vinha ela o seguindo atraída por aquele aroma. Desvendada suas intenções julgou a onça de boa estirpe. Propôs aliança mais ela. Ofereceu seu tabaco em acordo de paz. E por um instante, o Bananeira esquivou-se impressionado com o trago felino. Via-se somente a ponta flamejante na boca da onça arrodeada pelo fumaceiro de chaminé que saia do focinho. Não tardou ela arriar ao lado dele mais veludo. Passaram os três aquela noite encostados nas pedras. Fumando os dois, na sela de amigos longínquos. Admirando a noite de luar pontuada por vaga-lumes.


historieta narrada por (estradeiro-mor de vereda acima)