sábado, 11 de outubro de 2008

Um sujeito chamado sistema

“Bom mesmo era na minha época, quando criança fechava o bico enquanto adulto tinha prosa séria”, Dona Sebastiana, que ensinava as letras e números para muitas crianças do sertão, dizia isso toda vez que a menina opinava. A mãe dava um beliscão e olhava torto, mas até a criança sabia que era só pra não contrariar a sábia Dona Sebastiana.
Tinha oito anos, a menina era ladina, contava número grande sem nem usar os dedos e já arrematava uns pontos de crochê. Todos sabiam que ela não se criaria ali, ela merecia estudo de cidade grande, mas era perigosa a menina, tinha até o desplante de olhar os meninos nos olhos, olhe só o atrevimento!
Dona Sebastiana, antiga moradora e antiga em todos os aspectos, era uma sábia conselheira e a ela pertencia o pomar mais bonito da região, contavam que ela era bruxa, mas isso lhes conto em outra ocasião.
A menina contrariava Dona Sebastiana com gosto, como quem fala só pra poder cutucar. Certo dia, a velha ficou injuriada com a audácia da menina. A mãe, cansada das reclamações, decidiu mandá-la pra casa dos tios, numa cidade tão chique que tinha até prédios e lojas de departamentos, cujo nome me causa profundo estranhamento.
Voltou quando tinha quinze anos, uma bela moça, mas que de recatada não tinha nem o joelho, que fazia questão de mostrar. Usava preto, pinturas estranhas no rosto, tadinha, parecia de luto a pobrezinha! Diziam que a cidade grande tinha afetado a menina, até o padre tentou ajudar. Ela culpava um tal de sistema, que ninguém nunca tinha ouvido falar!
A cidade inteira se comoveu, até procissão ocorreu. A família se desesperou. Foi um caos, todo mundo atrás daquele tal de sistema que ninguém nunca conheceu. A pobrezinha até ouvia umas músicas pra se alegrar, mas muito estranhas por sinal, ou eram num dialeto muito peculiar que ninguém entendia, ou eram apenas sons excêntricos, eu diria, do tipo de britadeira de construção.
A mãe morreu de desgosto. A menina até tentou criar uma religião. Mas quando chove demais aqui no sertão, ninguém mais usa lenda antiga, Dona Sebastiana conta que é a mãe da menina que tenta lavar a alma da filha, tirar a pintura, voltar a ver a menina que saiu daqui sem conhecer as tais lojas de departamento.
E isso não é conversa fiada não, basta ligar o aparelho televisivo e provar a veracidade da questão. Tá todo mundo atrás desse tal sistema, é tudo culpa dele, ah se o mundo soubesse que esse sujeito provocou no sertão....


historieta narrada por quem estava na casa da árvore

2 comentários:

hellen disse...

olha que aqui, essas coisas não existem, não. aparelho televisivo é coisa do 'sinhô' do casarão. mas já ouvi no meu 'raidin' de pilha, que esse sistema segue uma trilha. ele começa como quem não 'qué' nada, e entre uma mocinha e outra que aparece, faz 'as gente' ficar enredada. até que ninguém mais aguenta, e todo mundo quer ficar lá, na frente dela, porque ela atenta.
sorte dessa menina, embora Dona Sebastiana ache isso errado. mas ouvi dizerem, no meu 'raidin' de pilha, que no sertão ninguém é letrado.
esse tal sistema deve ser coisa do diabo. se eu encontrar, ainda um dia, dou cabo. só por causa dessa menina, tadinha, que descobriu tudo tão de repente. mas eu pouco sei dessas coisas, minha gente.

bom, eu vou é dormir. patrão chama a gente cedo, e desse sistema, eu nem sei falar muito a respeito.

(O.o)

Daniel disse...

Os sertões vão além da caatinga ou dos Gerais. Estes ermos lugares, onde coabitam o arcaico e o moderno. Nascem e sustentam-se de casinhas simples que escutam carros passar, também no Riberão da Ilha ou no Pântano do Sul. Aqui o primeiro indício duma herança de Cascaes: a senhora com suspeitas de ser bruxa. Para além,o texto, não perde esse norte condutor: O choque inevitável do nosso tempo. O velho e o novo. E o que virá depois?