domingo, 22 de março de 2009

Jandira, agradável senhora.

Quando a gente precisa prosear, jogar conversa fora ou só falar mal da vizinha, a gente vai falar com Dona Jandira. Ela sempre recebe a gente com um café recém feito na mesa, parecendo até que tava esperando. Mas já me disseram que ela nem tem café naquele bule, ela só deixa o cheiro do pó sair do saco, e infestar toda a casa; daí fica aquele cheiro bom, de café recém feito, que só engana! É que ninguém nunca cai nos encantos dela, porque estamos sempre atrasados e passamos só pra dizer o 'oi' daquele dia, ou pra falar mal daquela vizinha chata, de novo; eu ia mesmo era pra ouvir as histórias dela. Mas ela nunca se incomoda de não aceitarmos o convite pro café, até se contenta e senta na mesa sozinha - quando já é hora - e bebe, dessa vez de verdade, um recém feito; come a cuca recém saída do forno, e deixa todo o cheiro bom pro próximo que vir lhe visitar às pressas.

Todo dia de manhã, ela sai. Às vezes, compra as próprias flores, depende do dia; mas sempre sai. Quando encontra alguém no caminho, brinca 'deixe-me ir, preciso andar! Estou por aqui a procurar...' e diz para si mesma 'rir pra não chorar'. Ela sempre gostou muito do Cartola; grande mestre, que segue desde muito tempo. Brinca que é caRtólica; uma religião.Sempre que a gente vai na casa dela, ela tá ouvindo um vinil dele. Dele ou dos amigos; amigos dele, dela, de música, dA música, enfim! Ela sempre gostou muito de música. Mas música pra ela, só é boa, quando tem um dedo de tristeza. Diz que se parece com Vinícius, nesse ponto. Ela diz também, que Vinícius já foi apaixonado por ela, na adolescência; mas ela era nova demais e nunca gostou muito daqueles olhos profundos, não; e sabia que ele seria aquele careca-com-cabelo quando mais velho. Só nunca suspeitou - ingênua que era - que também seria aquele homem insaciável, e brinca 'se soubesse, teria era me jogado de verdade! viveria ao menos um amor eterno enquanto durasse. E que amor, seria!'.

 Todos na vizinhança dizem que ela nunca teve um namorado, marido; nada! Ela, diz que é solteira-viúva. Coloca o solteira na frente, porque diz que não tá morta e quer ter a oportunidade de encontrar um Chico na vida. O viúva vem atrás, não por não gostar do título. Pelo contrário, ela se orgulha de ter sido mulher de um militar, embora sempre fosse contra a tudo que ele lutava a favor. 'Aquela correria em 68...! Passo mal, sempre que lembro! Não sei pra que ele ia se meter naquilo, e daquele lado, ainda? Mas eu sei que era naquilo que ele acreditava... e eu respeito! Ainda agora, na memória, eu respeito!’ e mostra uma foto dos dois, no dia do casamento; chorosa.

Filhos, ela nunca teve. E desses, ela nem reclama de não ter tido. Só reclama da impossibilidade de, com isso,  ter netos. Já pensou em adotar, e chamar de neto; mas achou que o trauma da criança poderia ser mais intenso. 'Porque imagine só, adoto um piá e em vez de ser mãe, sou avó. Ainda que avó tenha melhor fama, não dá. Parece que o garoto foi abandonado duas vezes, tadinho, e adotado por uma velha, que se sente sozinha...' Ela se chama de velha a toda hora, mas não aceita desrespeito. Pega ônibus quase todo dia, às vezes só pra passear, às vezes pra compromissos mesmo. Fica indignada quando não se levantam pra algum idoso... Pra ela, sem problemas. Diz que é forte e sempre agüentou a dureza da vida, mas tem tanta velhinha que não agüenta se segurar de pé ali, por tanto tempo...

Os olhos dela não a acompanham mais nas leituras diárias, mas ela tenta. Já pediu uma lupa pro moço da casa dos vidros, mas ele não retornou. Diz que é porque ela é velha e acha que está ficando gagá.'Óculos eu não uso porque estraga a cor dos meus olhos. Imagine, colocar uns óculos quaisquer nesses olhos verdes? É pecado demais! E nem Deus perdoa.'

 

Faz algum tempo que eu não passo mais lá. Mas sempre ouço falarem dela, e que o cheiro bom de café já anda chegando na esquina. Sinto falta das tardes ociosas, em que ia lá e ficava observando todo o trajeto que ela fazia. Ontem ainda, passei pela praça onde ela parava pra tentar ler mais um capítulo de livro... Achei o marcador de página que ela mais gostava, e um ouvi um pássaro assobiando... Olhei o céu com uma vontade extra; por um momento achei que fosse Cartola o que ele cantarolava; depois vi que o saudosismo era maior, e imaginei ela vindo, na minha direção, com o bule – dessa vez cheio – e me oferecendo uma cadeira, para que na varanda, a gente contemplasse aquele arco-íris bonito de fim de tarde.


historieta narrada por H.

2 comentários:

Kelly Yshida disse...

Dona Jandira não me enganava com o cheiro de café, durante as tardes ouvindo os vinis eu ficava alí, rezando, para que ela viesse com o bule cheio. Café sem igual, forte, "pra levantar defunto e curar ressaca" dizia.
Mas do romance com Vinícius, ah quem ousa negar que quando ele escreveu
"O seu café vai ser doce.
Como se fosse um carinho
O seu café vai ser doce
Como se fosse um beijinho
De uma mulher
Que faz um bom café"
ele não pensava na jovem Jandira sob aquele arco-íris bonito de fim de tarde com um bule de café para seu maior admirador?

Daniel disse...

De repente a nostalgia virou vergonha. Esse tempo do "novo", cujo passado é o tempo oculto escondido no breu, ofuscado pela luz do presente. Quer a saudade do que ainda não veio e não teremos. Tudo aquilo que será impossível para nós e “maior?” do que a vida prosaica e poética de Jandira.
Tive uma Jandira na infância. O nome não recordo, ou nunca soube, já que ela era madrinha de um amigo e assim a chamávamos. Esse amigo, por nome Waguinho, juntava-se a mim e a um terceiro chamado Bill, nas tardes de bagunça pelo nosso bairro proletário chamado Jardim.
Esses três moleques, ao pisarem na rua, viam todas as casas fechadas num aspecto de medo. Depois de uma ou outra traquinagem, algum vizinho aparecia aos berros com a gente, sugerindo denuncias aos nossos pais. Portanto quando o cerco apertava, a corrida era certa para casa da Madrinha.
A Madrinha era franzina, alta, cabelos grisalhos, encaracolados e com a voz em toda doçura. Tinha aquele ar de mulher santificada. Por isso meu olhar infantil, não podia a ver como mãe ou vó: ela era simplesmente nossa Madrinha. Quase uma Madre Tereza suburbana. Sempre a nos defender na barra de sua saia contra os equivocados do bairro.
Depois de algumas brigas com moleques de comarcas distantes, alguns dedos machucados pelo futebol e novas pipas conquistadas na guerrilha aérea, chegava o momento de respirar. Tocava o apito da fábrica. E pronto, religiosamente às três da tarde corríamos para sua casa.
A casinha silenciosa habitada de solidão, preenchida pelo crochê vagaroso daquela senhora, em nossa balbúrdia de pés sujos tornava a ser alegre. Éramos os filhos que nunca tivera. A Madrinha jamais dirigiu a nós uma palavra ríspida ou um tom mais alto de sua voz. Por vezes não compreendia como podia ser difícil aos outros adultos virarem Madrinhas.
Nós três sentávamos à mesa. A Madrinha continuava seu ritual. Desdobrava toalhas, punha rapaduras, biscoitos de toda cor, enquanto a água fervia no bule. Minha mãe não compreendia meu gosto repentino pelo café. Nunca o aprovei. Para aquele pequeno teimoso, o café confiava à vida o sabor amargo, coisa de adulto, não prestava para meu mundo de brincadeiras. Estava incompatível ao meu dia a dia.
E de repente, num jeito que só Santa pode converter, o café era melhor do que os sonhos da padaria. Mas só aquele da Madrinha. Anos depois aquele mesmo aroma chega-me novamente. E a minha Madrinha de Calcutá, batizada: Jandira.